domingo, 21 de setembro de 2008

Duas Arrogâncias

Marcelo Mário de Melo

Para muitos crentes, os materialistas, ateus e agnósticos são criaturas decepadas, incompletas, enquanto eles são feitos à imagem e semelhança da divindade e a têm incorporada, como se constituíssem versões humanas da hóstia consagrada.

Para muitos ateus, os crentes são seres cegos e de muletas, inconscientes das suas potências, enquanto eles arrancaram o fogo sagrado dos deuses e ocupam o seu lugar, numa versão todo-poderosa do deus-super-homem.

A arrogância religiosa conjugou o verbo converter, sacrificando infiéis e pagãos no altar do dogmatismo, com espada e fuzil abrindo os caminhos sagrados e sangrados da bíblia, do alcorão, do talmud, com o aval da assembléia geral dos deuses de todas as crenças.

A arrogância materialista, atéia, agnóstica, investiu o homem em dominador da natureza, rimando humanismo com imperialismo racionalista, cientificista e tecnocrático, criando seitas e altares seculares e alimentando miragens de paraísos terrestres.

Em ambos os casos, os caminhos construídos sobre o terreno pantanoso de mitos, dogmas e utopias, vendendo verdades acabadas e imutáveis, encerradas em quadrados e círculos fechados.

Em ambos os casos, o pecado da sacralização da vida, a fundação de elites de eleitos, arcanjos inquestionáveis, porta-vozes da justiça ou da boa nova, arautos da fé ou da utopia, colocados acima do bem e do mal e com poderes especiais sobre os simples mortais.

Os caminhos trilhados pela humanidade rejeitam a vigência destas duas arrogâncias e desafiam os crentes e os descrentes a se renovarem, se olharem diante do espelho e se contemplarem despidos, para se libertarem das mazelas comuns.

É preciso destruir esses templos e construir outro tempo, em que a crença ou a descrença na divindade não seja colocada como sinete de superioridade e construção de muralhas à vida, à natureza, à diversidade e à convivência.

Os crentes, aceitarem a realidade daqueles que não acreditam nas suas religiões e nos seus deuses e se contentam com a materialidade da vida. Os descrentes, entenderem o exercício religioso como uma livre opção da sobrevivência humana.

As obras em primeiro plano, conforme proclamaram o crente Cristo e o materialista Marx.
A ação humana de abrir portas, acender lâmpadas, plantar e cultivar, somar e multiplicar, ligando estrada e horizonte, vaga-lumes e estrelas, o individual e o cósmico.

Em primeiro plano, a consciência cósmica unindo crentes e descrentes na valorização e na preservação da vida em todas as suas expressões. E consciência das diferenças de interpretação e crença ante as grandes interrogações da vida e da morte.

Respeito a essas diferenças e plena liberdade de expressão. Sem a ilusão de que um dia a humanidade irá viver em estado de unanimidade, num viés religioso ou não religioso, com a cessação das dúvidas, dos não-saberes e das divergências de idéias.

Aceitar a imperfeição, o inacabado, o desconhecimento, a incerteza, os acidentes e as surpresas como componentes naturais da vida em sociedade, presentes nas estruturas coletivas e nas trajetórias individuais.

Procurar construir arquiteturas conceituais e sociais flexíveis, permeáveis e sintonizadas com esta realidade aberta, impura e dinâmica, em lugar das cristalizações que agrilhoam o presente e comprometem o futuro.

Os homens não são santos e os santos foram pecadores. Não permitir que líderes e chefes se transformem em caudilhos, patriarcas e tiranos eternizados. Delimitar os campos, os termos e os tempos dos seus mandatos reversíveis.

Descartando os corporativismos, os grupismos, os nacionalismos, os racismos, os elitismos e os privilegiamentos, investir em formas republicanas marcadas pela universalidade dos direitos e o reconhecimento dos direitos especiais.

Acentuar os mecanismos da soberania popular e retirar da representação política o caráter de profissão, outorga e privilégio, atribuindo-lhe a condição de serviço e mandato temporário sem vantagens de poder e pecúnia.

Não permitir que a arrogância, envolvendo divergências acerca de religião e divindade, comprometa o esforço comum de crentes e descrentes nas searas onde se semeia a vida em abundância.



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